Ou o possível relato de um ataque pirata nas costas do Brasil
Havia mais de um ano que navegavam pelos oceanos, das muitas tempestades sobravam apenas 3 Naus na Armada, carregadas até ao tombadilho de tecidos especiarias e preparos para apartar das dores os mais ricos da Europa.
Dos que até ali sobreviveram todos estavam exaustos de tanto mar, com tanta carga e tão pouca comida, já se comia, os biscoitos de farinha duros como pedra e bichados, os ratos do porão e até o couro das solas demolhadas em agua salgada.
O capitão apenas berrava de noite e de dia para controlar as velas. Há mais de dez dias que dizia "Amanhã fundeamos em terras de Vera Cruz".
A fome e a sede já tinham levado muitos e os que restavam não sabiam se desejavam chegar a terra para matar a sede e a fome, ou se preferiam ser levados pelas ondas de uma tempestade.
Dizia-se, à voz pequena, que em terras de Vera Cruz, havia selvagens tão fortes e valentes que usavam comer os navegantes que ousavam pisar terra.
Ao entardecer daquele dia levantou-se tal tempestade que todos se ajoelharam junto ao nicho de Nossa Senhora dos navegantes no Castelo da popa, orando para que não os levasse o diabo com tanta água que do céu tombava.
Já a noite se assomava quando o vesgo berrou lá do alto do cesto da gávea, que então alguns chamavam de "caralho", TERRA À VISTA !!!
E muito berrava aquele alma do diabo enquanto balançava no alto do mastro, de tão vesgo que era, poucos acreditaram no que berrava.
Mas, a tempestade atirou com as naus para terra, quase causando uma desgraça. Lançada a ancora, a armada ficou a algumas léguas de terra até ao despontar da alva.
Já o sol ia alto quando alguns foram a terra, onde foram recebidos por um grupo de índios eufóricos, que já habituados a lidar com navegantes, esperavam receber algumas quinquilharias que eles muito apreciavam, em troca de água e carniça.
E muitos foram a terra, onde mataram a sede com águas doces e a fome com algumas carnes de estranhos animais de caça.
De bucho cheio e em grande folguedo, todos cantaram e dançaram tentados pelas Índias que despudoradas andavam mesmo sem esconder as vergonhas.
Tanto foi o folguedo que, depois de tantos tormentos passados no mar, todos acreditavam ter chegado no paraíso.
E por ali ficaram alguns dias fazendo reparos nas naus, nas velas e carregando águas e alimentos para bordo ajudados pelos Índios.
No dia da partida o capitão notou que faltavam dois homens, irado bradava ameaçando todos a bordo.
Todos sabiam que tinham se embrenhado na floresta preferindo ficar no "paraíso" a enfrentar mais mar com sede e fome.
À primeira luz da alva, zarparam em direção a Norte , navegando com terra à vista durante alguns dias, senão quando o vesgo berrou do alto do "caralho" (cesto da gávea) "Nau à vista".
Todos se assomaram da amurada tentando entender se seriam piratas, que a algumas léguas do Cabo Frio estavam ancorados.
Cabo frio era onde pretendiam fundear e ir a terra antes de rumarem a alto mar.
O temor era grande, eram muitas as histórias que entre marinheiros se contavam da selvajaria e crueldades que os piratas cometiam sobre as tripulações das naus das índias.
Seriam franceses, holandeses, espanhóis?
Pouco importava... à ordem do capitão todas as velas foram erguidas e tomaram o rumo do alto mar, tentando escapar da vista dos piratas que por essa época se acolhiam em terras de Vera Cruz, esperando as naus lentas de tão carregadas com riquezas das índias.
Após dois dias de perder terra de vista, aquela nau continuava perseguindo a armada, deixando claro que eram piratas tentando abordar uma das naus e tomar para si a carga.
Foi no terceiro dia de alto mar que o capitão ordenou que a armada se dispersasse e ordenou rumar aos Açores para reunir na ilha do Faial.
Pouco tempo passado e um pequeno batel com alguns homens velejava em direção à nau vociferando algo que ninguém entendia.
A bordo todos estavam em pânico, sabia-se que resistir seria condenação à morte mais cruel que se possa imaginar.
Cagados de medo, uns clamavam pela rendição, outros tudo faziam para enfonar ao máximo as velas, tentando aumentar a velocidade para fugir ao assédio que os piratas faziam.
O capitão, sabendo que perder o navio era a condenação à morte, berrava o mais que podia tentando manter os homens dominando a nau para fugir do assédio.
Com a nau carregada navegando lentamente, a nau pirata aproximava-se a grande velocidade e já estava ao alcance de bala de canhão.
Foi então que se ouviu berros vindos da nau pirata falando português.
Uns diziam que seria Bartolomeu o português, pirata que já tinha sido preso na região de S. Catarina em Campeche (atualmente Florianópolis), onde fora condenado à forca, tendo escapado com ajuda do diabo com certeza, recuperou o seu navio e ficou ainda mais agressivo e cruel.
Outros diziam que seria o Brasiliano, um pirata famoso pela sua crueldade. Nascido na Holanda esperava nas costas do Brasil as naus que raramente escapavam ao seu assédio.
Enquanto todos discutiam tentando saber quem assediava, por cima do burburinho, ouvia-se a voz do capitão berrando e dando ordens, tentando aumentar ao máximo a velocidade da nau.
Aos berros o capitão lembrava o que podia acontecer se fossem dominados.
"VOCÊS QUEREM MORREM NA PONTA DA ESPADA OU CAMINHANDO NA PRANCHA?"
"QUEREM SER ALIMENTO DOS TUBARÕES?"
Homem experiente a acostumado à vida do mar, o capitão sabia que apenas a ideia do terror podia animar os homens, que há dias manobravam tentando escapar do assédio e estavam nos seus limites.
Para piorar as coisas, no horizonte as nuvens negras anunciavam uma daquelas tempestades tropicais, que todos temiam por saber da fúria dos ventos e da tanta água que descarregavam dos céus.
Muitos já não sabiam se seria melhor morrerem na ponta da espada dos piratas ou naufragados na tempestade.
Mas o capitão sabia que aquela era a oportunidade que os podia salvar da morte certa às mãos dos piratas e ,se em circunstâncias normais tentaria contornar a tempestade, ordenou que rumassem a ela a todo o pano.
O pânico estava tomando conta da tripulação, temendo a tempestade, à beira do motim, a tripulação mostrava temor por se dirigirem diretamente para a tempestade.
No meio de tamanha confusão, ouviu-se a voz do Negão vociferando...
Foi na costa de África que ele se juntou à tripulação, pouco falava, raramente dizia mais que sim ou não, homem forte e corpulento era tido como pouco inteligente mas forte e valente, e naquele momento a sua voz soou como um dos trovões que já se ouviam com a chegada da tempestade.
"JÁ PASSAMOS POR MUITAS TORMENTAS, TODAS VENCEMOS, PREFEREM A MORTE CERTA ÁS MÃOS DOS PIRATAS OU TENTAR SOBREVIVER NA TORMENTA?"
Dito isso botou a mão no cabo da vela a que chamavam de genoa, aliviou a retranca e começou a recolhe-la para que o vento forte da tempestade não a esgaçasse.
A sua voz e o seu ato foram tão fortes que até o capitão se calou, todos se animaram e com ganas se esforçaram para controlar a grande nau na tempestade.
Foi uma noite violenta, ninguém a bordo teve descanso e quando o dia começou a clarear, um mar calmo, um vento constante e suave continuava levando a nau a caminho dos Açores.
Dos piratas nem sinal deles.
E foi assim que unidos venceram os piratas e a tempestade, estando a caminho do destino.
Esta foi uma história entre as muitas que meu avô me contou à beira mar.
Ele também dizia que tinha sido pirata, mas nisso eu nunca me fiei, era bom demais para ter sido cruel.
Ou será que a vida o tinha ensinado o suficiente para adoçar o seu ser?
Texto de: -Joaquim Tomé - 2022
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